...A-verso...®

Porque sempre há muita coisa antes... e sempre haverá muita coisa depois...

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domingo, 28 de setembro de 2014


Golias

É impossível que as mudanças não aconteçam...não há como evitá-las... a questão é que quando são boas, não nos damos conta de que elas aconteceram, apenas a vivenciamos como algo comum, consequência da vida...

No entanto, quando as mudanças apontam para outros lugares, outras pessoas, surpresas, sobressaltos, solavancos, galopes, ficamos perdidos sem saber o que dizer, o que fazer... 

Talvez porque não haja mais nada a se dizer ou a se fazer, mesmo...
Muitas vezes, o silêncio é o nosso maior grito, desde que a nossa consciência seja o nosso melhor travesseiro...

Davis...

Torci pelo Brasil com amor. O futebol me move, movimenta, mexe comigo porque sou sua amante. Mas o futebol do Brasil é do meu time, como diz o meu sobrinho de apenas 5 anos. E eu sou do time do Brasil, não dou gargalhadas quando meu time perde, não consigo.
Sinto pela derrota do Brasil, e admiro mais ainda David Luiz acenando e pedindo desculpas ao povo brasileiro, dizendo que tudo o que ele queria " era dar alegria ao povo brasileiro de alguma forma..." E continuou: "...todos sabem que tudo o que eu queria era dar alguma alegria a esse povo, pelo menos através do futebol, e eu não consegui..."
Não entendo o amargor das pessoas torcendo pela Alemanha, fazendo campanha contra o Brasil através do futebol brasileiro, falando de fundamentalismo religioso, mas criticando o culto de David Luiz e de Thiago Silva. Não entendo essa felicidade que vem através do futebol que tem de ser tolhida em nome de uma intelectualidade tão legítima quanto corrosiva...
Não entendo a ESPN, não entendo o Sportv, não entendo os críticos sociopolíticos de plantão, não entendo Luiz Felipe Scolari, não entendo a alegria daqueles que, sendo brasileiros, torcem pela Alemanha, Argentina... não entendo insistirem viver nesse país que tanto criticam...
Não entendo essa cultura midiática de apelo abusivo ao usar imagens de crianças inflando os bastidores de servidores públicos estaduais e municipais. Não entendo aqueles que apedrejam a Seleção Brasileira porque esta tem estes e aqueles patrocinadores. Se entendo, quando entendo, é através de um grande e longo feixe de frustração - reflexo de um mal-estar bem mal resolvido...
Sou brasileira, e hoje mais do que nunca. Estou cansada, desisto, choro, grito, desespero, não entendo, me reinvento ..."e é por isso que eu me sinto cada vez mais limpo, cada vez mais limpo, cada vez mais limpo..."
E por último...
Não entendo...
a Copa não estava comprada?

DAQUILO QUE EU SEI - Ivan Lins
Daquilo que eu sei
Nem tudo me deu clareza
Nem tudo foi permitido
Nem tudo me deu certeza...
Daquilo que eu sei
Nem tudo foi proibido
Nem tudo me foi possível
Nem tudo foi concebido...
Não fechei os olhos
Não tapei os ouvidos
Cheirei, toquei, provei
Ah, eu usei todos os sentidos
Só não lavei as mãos
E é por isso que eu me sinto
Cada vez mais limpo!
Cada vez mais limpo!
Cada vez mais limpo!

sábado, 21 de agosto de 2010

...A-verso...
é o não dito, o interdito, o que está nas entrelinhas. É o grito que se transformou em silêncio ou simplesmente em um olhar distante, ainda que presente...
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sexta-feira, 30 de abril de 2010

Maria

Era conhecida como Maria... Salve, Maria! Tinha vocação para o sacrifício. Pela manha, nove lavagens de roupa; à tarde, creche; à noite, supletivo; de madrugada, iluminava o mundo trazendo à luz diversas crianças  que a chamavam de vó. E haja vó para tantos netos...
Maria era ave, porque mergulhada nos problemas  dos outros, encontrava solução para esquecer os seus, porque os seus sempre lhe pareciam insolúveis. Dava conselhos de uma forma tão firme e convicta que parecia já ter vivido das mais diversas agruras e dificuldades.
Maria era Maria do morro, Maria do céu, Maria parteira, era Vó Maria. Foram longos e intermináveis anos corando roupas no chão de cimento do quintal. Anos, sendo mulher, mãe, vó, mas agora era só Maria. Todos tinham partido em busca de uma vida melhor, deixando ela ali com as suas reminiscências de todos os dias.
Rutuais eram as missas de Domingo. Gostava também de ouvir a hora da Ave Maria às seis da tarde. Sentia-se homenageada...ria e chorava. Nessas horas, movida de profunda reflexão, pensava: Não sou Ave Maria...não posso ser a mãe de Deus...
Pobre santa Maria...
Nos dias de verão, Maria costumava rezar no quintal o terço em voz alta. Pedia chuva para aqueles que não tinham ar condicionado em casa. Dizia que o progresso não era coisa de Deus. Progresso demais deixava o chão sem grama, as matas sem árvores, as ruas tossindo monoxido de carbono. Progresso demais, pensava ela, deixava o alimento enlatado, as caras das pessoas esticadas como se fossem bonecos de plástico.
Maria adorava ver novela, adorava aquelas histórias tão cheias de bonitezas...E aquelas atrizes do seu tempo... tão conservadas...Devem ter feito plástica...Agora até entendia o porquê das caras ficarem de plástico, sem mexer...Eram como as bonecas das suas filhas...Tudo plástico...
Maria adorava cuidar das suas crianças, mesmo as mais inquietas, dizia que eram anjos, e que Deus falava através delas. Maria dizia que naquele morro não havia uma criança que não houvesse passado pelas suas mãos de parteira. Conhecia cada uma delas como a palma da sua mão...
No entanto, o que Maria não sabia era que mesmo na palma de nossas mãos há diversos caminhos...
Certa vez, a noite já ia alta, Maria foi chamada às pressas para fazer um parto. Ia rezando pelo caminho para Nossa Senhora do Bom Parto, quando viu o carro da polícia se aproximar. Cega pelas luzes do farol alto, Maria disse: Vá com Deus. Logo atrás, dobrando a esquina, um grupo de  dez meninos ofegantes e encapuzados, sem perceber a presença de  Maria, disparam contra a viatura policial, saudando Maria com uma rajada de metralhadora.
Sem ter como atingir os policiais, os meninos voltam seus olhos para o chão e dão com o corpo inocente de Maria. Sem entender o que estava acontecendo, Maria acha que esta rodeada de anjos. Filmando o olhar de cada um deles carregado de lágrimas e desespero, não teve dúvida: eram os seus meninos, que, transfigurados, tomam o corpo de Maria em seus braços e, colocando-o em seus ombros, inconsoláveis, cantam Ave Maria...
Por Mônica Z 

sábado, 21 de novembro de 2009

Paulo

Acordava sempre bem cedo, e da janela olhava toda aquela paisagem suicida se desfazendo após o desmoronamento humano. Ribanceiras de carne e ferrugem rolando morro abaixo, desenhando o hemisfério de uma paz sórdida, cheirando a cachaça e miséria... Câmera lenta de angústia e morfina...
Bom dia, seu Paulo? A voz não saía... A esperança escorria lodosa... era ponto final e não mais reticências...
Bom dia, seu Paulo? Devia ser mesmo seu...de alguém, de todo mundo ou de mais ninguém. Não sou meu... sou do morro... Não sou daqui... Este não é o meu lugar... Nao sou de ninguém... Há uma filosofia que de tão política e canhestra ajuda a popularizar o morro ao mesmo tempo que o exclui do lado de lá. A demarcação vai além do que um simples advérbio de lugar...Era da favela... Não era da favela... Não era de lugar nenhum...
O que nos sobra depois da esquina do silêncio? O que nos resta depois do fascínio pela paz? A vida abortada pela náusea escarlate, debruçada sobre os bunkers da covardia e dos acordos insalubres dos pactos provençais. O morro se desfazia sob os seus próprios restos e sobre os restos da humanidade que incidia sobre aquele emaranhado de barracos, que debaixo de sóis escaldantes incendiavam os miolos de crianças, velhos, moços e moças patrocinados pela midia globalizante da tv alegria que falava de um tempo bom, de praias lotadas, no entanto que não banhava aqueles barracos arquejantes...
No morro, tempo bom era tempo de chuva caindo sobre as telhas de amianto...
O sol marcava o tempo bom dos brancos-pretos ricos... a chuva, o tempo ruim dos pobres pretos-e-brancos... favelados... Éramos vitrines do deslizamento da transparência e da honestidade. Ibopes de um tempo de cartas marcadas e silenciadas... Vai aonde, seu Paulo? Tombou ali mesmo vítima de uma bala perdida...
Por Mônica Z.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Virinéia

Dizia que qualquer dias desses daria uma de maluca e iria embora de casa...A família ficava em silêncio, e logo em seguida pedia que ela saísse de frente da televisão...Virinéia criara regras para viver a vida. Seu mundo cabia em uma caixa de fósforos. Tudo era muito simples. Ela dava as regras, cabendo aos outros a obediência cega...
Vivia reclamando de tudo...Da torneira da pia da cozinha, do pinga-pinga do chuveiro, do taco solto da sala, do ronco da geladeira...Todos os dias pedia ao marido para dar um jeito naquilo, mas ele estava sempre muito ocupado com o carro...Era taxista, e ficava horas lustrando o carro que mais parecia um espelho...Todo dia era aquela rotina...baforava o carro e em seguida passava a flaneja para conferir brilho à máquina...
Vendo que o marido-taxista se casara com o taxista-marido, pediu socorro aos filhos...E foi muito pior...A molecada chamou uns vizinhos para dar uma força na arrumação...Soltaram o som do pancadão que ordenava: Quebra tudo! E foi o que aconteceu...
Virinéia disse que que aquilo já era demais, e que agora ela iria embora e eles iriam ver só... Disse que dessa vez ela não voltaria atrás...No dia seguinte acordou cedo, caprichou na maquilagem e lembrou de um outdoor que vira a caminho de casa...Disk-faxina e reparos...Queria aproveitar que era sexta-feira e que todos chegariam mais tarde...
Entre um registro e outro no caixa do supermecado onde trabalhava, pensava na casa limpinha, cheirando a pinho... Ah nunca mais aqueles malditos tacos...nunca mais o ronco da geladeira...o pinga-pinga do chuveiro...a torneira que não fechava...Virinéia até imaginou o marido jantando à mesa com as crianças tomadas banho, penteadas e cheirosas...Abriu a porta da casa e lá estava ela...Vazia...Faxinada...Absolutamente limpa...Sem nada...
Dizia que qualquer dia desses daria uma de maluca e sairia de casa...Saiu.

Por Mônica Z

sábado, 20 de dezembro de 2008

Estevão

Nunca foi muito de falar...falar pouco para ele sempre foi sinônimo de sabedoria...De família humilde, Estevão nascera simples e morreria assim também...Nunca teve grandes pretensões sociais, dizia que isso era para pessoas inteligentes, e que esse não era o seu caso...Sentia-se descasado com com a vida...Seu compromisso era com a morte, afinal era dela que tinha que fugir, era dela que se escondia...a vida era contingência; a morte, pagamento, penitência...
Era de impressionar que já próximo a sua aposentadoria ainda carregava marmita com tantos self-services ao alcance dos seus dias tão contemporâneos...Mas não ligava para isso...mal sabia pronunciar o nome desses selfis aí...e quanto ao fato das pessoas falarem sobre ele carregar marmita, isso ele desconhecia...Se falavam, falavam em suas costas...não ousavam encarar a sua antirretórica tão azeitada de palavrões...Melhor deixar quieto...
Estevão impressionava na verdade mais pelo silêncio do que pelos palavrões...Estes saíam quase que performáticos...completudes da sua pouca instrução...isso ele dizia. Estevão era um sujeito comum...Nasceu preto, nunca se sentiu discriminado por isso porque, dizia ele, em pé de jabuticaba quem tem dentes brancos é banguela...Lembro-me dos seus dentes sempre muito brancos e grandes também...
Depois do almoço, Estevão parecia vislumbrar dias melhores...parecia que o pequeno repouso antes de retornar ao batente aguçava-lhe o desejo de dias mais amenos, menos ditados pelo ritmo da tecnologia e da ciência...Nunca tivera um plano de saúde...nunca ficara em casa um dia sequer por conta de doença alguma...e ao mesmo tempo nunca vira tanta gente matando e morrendo com tanta frequência...Hospitais lotados, cemitérios lotados por morte de morte e morte que não se entende...
Os morros lotados viraram favelas, as favelas lotadas viraram complexos, os complexos lotados viraram depósitos de maldade e violência...Os pais de família, assim como eu, as donas de casa, ah, esses não contam mais, não...Eram a parte do igual...do comum...do que não representa...do que ninguém quer mais saber...As pessoas de bem que moram nesses lugares são sobreviventes de guerra, e vocês se preocupando com a minha marmita ou com o que eu vou fazer com o dinheiro da minha aposentadoria...
No turno da tarde Estevão tornava-se mais silencioso e menos atento também...dizia que a tarde conversava só consigo mesmo...Achava que o fato de ter vivido mais da metade da sua vida na favela fazia dele um homem de sorte...Apesar de já se sentir bastante cansado, sentia orgulho pelo fato de nunca nenhum problema do coração ou de pressão lhe tirar do trabalho...Nunca faltara um dia...Nunca sucumbira nem a doença, nem ao cansaço, nem a ciência, nem a tecnologia...No final tudo é a mesma coisa...Todos olhavam-no como uma coisa ultrapassada, velha...ferro velho irreciclável...
Ah, mas deixe isso pra lá...Deixe esses pensamentos adormecidos...é melhor que não acordem mesmo...Estava indo para casa descansar...Agora descansar de verdade...Amanhã não precisaria ir mais ao trabalho...Hoje fora o seu último dia mesmo...Já tinha dado entrada nos papéis...Meus D'us! Mais de trinta anos de dedicação sem faltar um dia...Era um sobrevivente...e isso fazia dele um homem ainda mais forte...
Naquele dia deitaria mais cedo...O dinheiro...uma casinha no baixo para aliviar as dores nas pernas...um terreninho...Na cabeceira, um livro de história que explicava sobre a Lei da sexagenária...Leu atentamente...tão atentamente que nem percebera quando o livro escorregara das suas trabalhadoras mãos...O pessoal da repartição quando chegou à sua casa de supresa com bolo, bolas, línguas de sogra e chaupéuzinhos para festejar a sua aposentadoria, mal não acreditava no que vira...O livro no chão, sua mão estendida para fora da cama e a outra sobre o peito...Aquelas mãos tão trabalhadoras aposentadas da vida...
Ajeitaram-no na cama, fecharam os seus olhos, cantaram parabéns, soltaram fogos, beberam, se inebriaram com todos os humores que se dilatavam de seus corpos num assomo de espasmos e náuseas...Ligaram para família, ninguém podia vir de tão longe...Passaram a noite velando o corpo de Estevão...Enterraram-no no dia seguinte...dia do seu aniversário...A morte chegara de surpresa como presente de véspera...
Por Mônica Z

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Joaquim

Não bebia para esquecer...bebia mesmo para lembrar o tempo agora...o tempo instante que salta à matéria bruta de dias e noites intermináveis...Bebia para lembrar o bicho menos bicho que repudiava as noites sérias de reflexão e trabalho tão tapinhas nas costas, bordando de suor sua melhor camisa...Bebia pelo desconserto do mundo tão em media res ao encontro do que não serve, do que não faz falta, do que não faz falta alguma...
Joaquim era o texto antes da escrita...a folha em branco que teima em não riscar...o choro guardado em papel de seda...a angústia da mãe que não chega...o filho que partiu...Beber fazia parte de um tempo presente depois da grande espera indecifrável do novo grande dia seguinte...a esperança de útero seco...Beber era embriagar-se da vida e isolar-se do mundo...difícil era o caminho da volta...ter que dar conta daquele silêncio que o devorava...corpo e alma desalinhados nas encruzilhadas de si mesmo...
O fato é que não precisava do dia seguinte para justificar-se diante da vida...era a vida que não o deixava em paz...que insistia em mantê-lo vivo mesmo depois do dia seguinte de portas fechadas e esquinas desertas...A casa pelo avesso...a comida azeda em cima do fogão...o vômito na roupa dizendo da sua incapacidade etílica...Não sabia beber...tinha que parar com isso...as contas já vencidas no chão há não sei quanto tempo...o cachorro dividindo com ele o espaço da cama...o dia se entregando à tarde...a luz cortada...a casa o expelindo como a um corpo estranho...
A diferença estava no espelho...no retrato sujo e lameado pelos seus olhos que não se cansavam de se embriagar de uma felicidadade inventada, hipocondríaca...Ali estava a resposta...Silenciosa chave de porta alguma...Ali estava a estrada amputada e sem saída por trás de um amor tão sem medida...ali estava o desespero da alegria de um amor que se abria em pétalas sempre, e sempre deveria ser para sempre e nunca tempo demais...Ali estava o homem por trás de um mundo tão simetricamente perfeito...um mundo que o asfixiava como a um soldado raso...
Joaquim era a sombra que vagava por trás do homem...a medida necessária para a composição de um salário estúpido...Ganhava dinheiro inventando histórias para os clientes...era quase um exorcista...um embuste acima de qualquer suspeita...O terno bem cortado...a barba feita...o perfume francês...um sorriso seguro...o grande investidor de tapinhas nas costas...O homem do bar...da gorjeta gorda se escondendo atrás da cortina de fumaça...da ferida em carne viva bordada no espelho...
Às sextas-feiras ia para casa cedo...Dona Iná já transformara o seu hades em olimpo...Os seus chinelos postos do lado esquerdo da cama...a casa cheirando a lavanda...Aquele cheiro de memória inebriava o seu corpo e enchia a sua alma de lembranças...as cortinas limpas apontavam para um mar vivo batendo lá fora...Aquelas ondas o inundavam de uma esperança amarga...
Mandava limpar a casa todo final de semana para receber os meninos...Há três meses não apareciam...Aquela casa tão limpa punçando a sua culpa como uma maldita máquina de hemodiálise ria dos seus bons tratos...da sua barba tão bem feita...dos seus desejos domésticos tão paternalmente nobres...O quintal...todos aqueles brinquedos tão cordialmente limpos, reclamando digitais de biscoitos recheados...
O sol se pondo adormecendo toda a casa de silêncio e tingindo de pavor todas aquelas vozes emudecendo dentro dele...atestando mais uma vez a ausência dos filhos e a incompetência do grande investidor...Era ele o próprio embuste...a grande mentira aos cuidados do medo e da covardia...
Da janela observa o mar na arrebentação enquanto o sol adormece por trás das pedras...Corre à porta do guarda-roupas, e com a coragem de um menino quebra o espelho...Com a mão cortada corre pela casa, e com força de um homem chora baixinho no canto do quarto...Não bebia para esquecer...bebia mesmo para lembrar...
Por Mônica Z.
Para Fábio W. Sousa
Para embalar

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Marieta

Marieta era preta de um só dente...era preta de rezadeira, e rezadeira de toda gente...Marieta gargalhava como quem tem todos os dentes...e todos riam da alegria de Marieta, porque achavam engraçado a sua alegria de um só dente...Marieta tinha reza pra todo mundo, mas dizia que as mulheres pediam mais rezas do que os homens...Marieta dizia que as mulheres eram mais cismadas...
De rezadeira Marieta passou a benzedeira...de benzedeira a raizeira...A cada dia Marieta aumentava mais o seu negócio...Era tanta gente pra atender que Marieta colocou tabuleta com horário de atendimento...Às segundas-feiras Marieta tirava folga...dizia que não estava pra ninguém...Não estou hoje nem pra mim...e gargalhava...Marieta era doce igual xarope de guaco que ela dava pra criança que tava mal dos pulmão...
Quando o calor ia forte Marieta botava a cadeira na calçada e ficava olhando pra todo mundo que passava...Pra cada pessoa um comentário...Tá gorda...bonita...Marieta achava que estar gordo era sinônimo de ser bonito...Os magrinhos procuravam passar de largo quando Marieta estava na calçada, caso contrário tinham que entrar e serem submetidos a uma sessão de garrafada que era pra ficar forte...e era magrinho que não acabava mais...
De tanto encalçadar em frente de casa Marieta virou conselheira...e era conselho que não acabava mais...e pra tudo quanto é tipo de gente...Tinha conselho pra menina que não menstruava e pra menina que era assanhada demais...Tinha conselho pra dona casada e pra dona solteira...Pra menino moço e moço homem...Tinha conselho pra mulher fria e mulher quente...Tinha conselho pra falta de fome...aperto no peito...quentura no corpo e nas partes...Tinha conselho até pra falta de sono...
As receitas de Marieta eram as mais diversas...Era um tal de comprar roupa virgem...catuaba...guaraná...tomar banho de abre-caminho...banho de assento...dieta das sete luas...Aparecia gente de tudo quanto é jeito...Era dor nos quartos, dor na bacia, ventre virado...Xi fia, isso aí é espinhela caída...Ó, isso aí é quebranto...Ih, é mau-olhado...Era um tal de assa-peixe, quebra-pedra, cana-d0-brejo, erva cidreira, erva-doce pra cá...arruda, manjericão, rosa branca pra lá...Na verdade, ninguém sabia onde começava a conselheira e onde terminava a rezadeira...
Marieta era assim...todas as nossas inquietações dormiam em seu colo...e num abraço o peso dos nossos dias transformavam-se em brisa que os seus olhos dissipavam apesar de já tão embaçados pelo tempo...Marieta nos recolhia um a um de nossa vergonha de cabeça baixa quando fazíamos coisa errada...Seu olhar debruçado sobre os nossos sonhos nos enchia de esperança de crescermos e sermos para sempre protegidos por Marieta...
Era uma vez a galinha...
A galinha có có có...
Era uma vez o pintinho...
O pintinho piu piu piu...
Acabou...
Por Mônica Z.
Para minha avó...
Marieta...
Para embalar

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Benedita

Gostava da casa de vários telhados porque um telhado jogava em outro telhado folhas secas e velhas...achava que havia poesia em se ter vários telhados...Gostava de sentir o vento em seu rosto e de sentir o vento bater nas folhas das árvores...era como uma escola de samba feita só de chocalhos...Imaginava o telhado cheio de gatos chocalhando as folhas...fazendo delas travesseiros de palha...
Trabalhava no quarto andar do prédio ao lado e fazia daquele quadro sua mais completa obra. Debruçada sobre a vassoura ficava imaginando-se levitar de penhoar pelos cômodos daquela casa de folhas e gatos...Seu olhar estreito de quem sempre obedecia dava lugar a uma expressão distante e feliz como alguém que experimenta o sabor de um doce roubado quando se tem fome...Às vezes era supreeendida pela diretora da escola sonhando em meio ao expediente de trabalho...banheiros por lavar...café por fazer...e o sorriso sempre dilatado de bom dia para quem quer que fosse porque todos sempre seriam superiores a sua vida tão cartão de ponto...
Um dia chegou ao trabalho de semblante fechado...não deu bom dia a ninguém...não olhava para ninguém...não queria estar ali...não queria saber de ninguém...Foi chamada à direção que lhe perguntou o que estava acontecendo...Perguntou se ela estava pensando que aquilo ali era a casa da sogra ou a casa da mãe joana...Ficou olhando cataléptica para a diretora que exigiu dela uma resposta satisfatória...O que seria uma resposta satisfatória - pensou...Sabia que ali não era a casa da sogra...quanto a casa da mãe joana...Minha sogra me mandou embora de sua casa...meu marido saiu de casa há 1 mês, e como ele não voltou ela me botou pra fora...Não sabia se aquela era uma resposta satisfatória, mas naquele momento era tudo o que tinha a oferecer...A diretora falou que não tinha nada a ver com seus problemas pessoais...que aquele ali era um lugar sério...e que se ela não estivesse satisfeita que pedisse as contas...
Benedita pensou em pedir as contas...primeiro do emprego...depois da vida...Depois de muito pensar com os seus botões resolveu pedir contas à vida...Tomou banho, jogou o uniforme da escola na lixeira, foi à sala da direção, cuspiu na cara da diretora e limpando a boca com as mãos disse que agora estava muito satisfatória...Puxou um cigarro, tirou um trago, foi até a esquina procurar a casa da mãe joana já que a casa da sogra...Deu de cara com a casa de muitos telhados... das folhas velhas e secas...
O portão entreaberto...Entrou...A casa era de um verde-água que misturava-se a um limo que entranhava-se pelas bordas da piscina, portas e janelas...Havia uma outra pequena casa aos fundos...Passou a mão no vidro da janela que dava para a cozinha...Aquela casa...a sua tão sonhada casa não passava de uma casa velha e abandonada assim como ela...A maçaneta estava quebrada...parecia que alguém havia estado ali antes dela...Foi entrando quase em câmera lenta...as teias de aranha e a poeira fotografavam o tempo...havia móveis mas a mobília estava toda revirada...Foi até a sala...a escada em madeira dava para o mezanino...subiu...
Contemplava a casa quase que enfeitiçada pela magia do tempo que sempre a manteve presa àquele lugar...Onde esteve durante todo esse tempo...Tudo aquilo ali era agora seu...Sua vida...seu espaço...sua história...A morte a acompanhara durante toda a sua vida...Vivera para o marido...para a casa...para os filhos...Todos haviam ido embora...Aquilo ali agora era o seu mundo e ele era tudo o que restara dela...do seu tempo de quando ela ainda não era...Pela primeira vez era apresentada a indizível...
Deslizou a mão sobre o corrimão...passou a poeira dos anos pelo seu corpo como se quisesse que aquela poeira carregada de memórias ocupasse as suas entranhas de forma visceral como se ela lhe pertencesse...Abriu as janelas da casa, do quarto, davida...Abriu as portas do guarda-roupas...pegou um penhoar...Acabara de acordar...
Desfilou pelo corredor como uma rainha...tinha o mundo sob os seus pés...Foi até ao jardim e olhou para cima...Lá estava o tempo passado sob o qual esteve subjulgada como um inseto preso pelas patas do gato que antes de matá-lo diverte-se com a sua impotência e incapacidade de reação...Sentou-se à mesa do jardim...mandou servir o café...pegou a xícara de chá e mostrou que sabia segurá-la como cabe a uma dama...Bebeu do silêncio que lhe consumia a voz e a alma...Bebeu de si...da vida...
A luz se aproximando, iluminando o seu rosto era finalmente reconhecimento e legitimação- pensou. Estava sob o efeito da magia que tudo aquilo lhe proporcionara...Levantou-se para receber os aplausos das pessoas que acotovelam-se para vê-la...Estendeu as mãos...os flashs...Tudo aquilo ali era o banquete da sua vida...Caminhou até o portão...
O policial - um vizinho seu - abaixando a sua cabeça com as mãos quis ajudá-la a entrar no carro...Ela fez que não...Aquela ali não era mais a personagem que inventara durante tanto tempo como mãe, esposa e mulher...Era Benedita...Diante dos flashs e da multidão cochichou no ouvido do policial...Ele retirou-lhe as algemas e as guardou...Ela sorriu para a multidão e entrou no carro de cabeça erguida...
Nem se dera conta de que já era outono...quando as folhas caem e as noites são frias...quando um telhado joga em outro telhado folhas secas e velhas...O carro desfilava lentamente pela alameda enquanto ela acenava para todos aqueles olhares curiosos que a ovacionavam como a dona da história...da vida...do tempo...das horas...
Por Mônica Z.
Para embalar

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Quitéria

Esquecida depois da imagem dos dias...plugada depois do arremesso da sorte...deslizou as mãos sobre a superfície áspera do mundo que deixara lá fora...mastigava a noite anterior ainda sob o peso embriagado que a vida lhe cuspira na cara...No arranha-céu sem palavras, a vida contava a sua história...
A patroa era a legitimação de sua meia-vida...protagonista de seus dias nublados...era ela quem garantia-lhe a condição de empregada...que dava visibilidade a sua pouca ou quase nenhuma importância...O olhar de Quitéria flutuava como uma câmera por aquela casa...A patroa gastava por semana tubos de dinheiro para sustentar sua cosmética beleza, e a miséria que ela recebia mal pagava o seu quarto e sala...
A sua comida nunca estava boa...Nunca estava à altura da dignidade nutricional da patroa...Todo dia a cena de repetia, e era sempre na hora de ir embora...Você pode fazer mais uma saladinha...Não era uma pergunta...era um comunicado...A experiêcia de estar vivendo a vida de outras pessoas de forma tão adestrada não a agradava em nada...Quitéria projetava-se na vida como um editor de imagens pronto para gravar as cenas dos próximos capítulos...
O patrão só vinha para casa aos finais de semana...Nunca a chamava pelo nome...Nunca Quitéria...Ela não passava de uma contingência...Eles precisavam de uma empregada e ela estava ali...Fazia parte da disposição um tanto quanto sórdida do politicamente correto...Sustentava o statu quo da patroa ao mesmo tempo em que era colocada em seu lugar de minoria assistencializada...Escutara algumas vezes a patroa ao telefone...Ah! mas é claro que ela vai aceitar... É tão necessitada...No dia seguinte lá estavam as roupinhas em um saquinho no cantinho do quartinho da empregada...
Odiava diminuitivos...Surgiam como sinônimos de tudo que vem a ser menor ou sinônimos de favores disfarçados de humildade...Comprar um biscoitinho no mercado...dar um pulinho na tinturaria, passar mais um paninho na casa...Tudo era muito simples na ótica de sua patroa, mas não na ótica de Quitéria...Mastigava os momentos que passava ali naquela casa como quem edita as últimas cenas de um longametragem...
Queria reconhecimento na vida...receber beijo de bom dia...sentar à mesa e comer pão fresco...beber água na garrafa...queria a vida...Seus quereres misturados às suas fantasias corriam nus por aquela casa tão sem abrigo e proteção...Seus sonhos tinham ainda os pés descalços e seu coração dilatado engolia a escuridão...Em noites de frio a esperança recolhia-se companheira...Pela manhã servia-lhe uma xícara de café e ali ficavam durante horas mastigando aquele silêncio carcomido pelos anos de vida abreviados em uma cela podre de dejetos humanos...Falta do tempo do tempo que falta...
Sabia de tanta coisa...e para eles isso não dizia absolutamente nada...O brilho dos móveis...Os espellhos sem manchas...Nunca seria reconhecida por nada em lugar algum...Por melhor que fosse, sempre seria o pior de qualquer um...
Numa tarde a patroa resolveu transferir as aulas da academia para dentro do seu quarto...A camisola de seda vinho esquecida no corredor...Sucos de clorofila à meia luz...Suas mãos ásperas de tanto cortar batatas fisgando a camisola...A dieta da patroa parecia ter ficado para trás...encontrara um outro jeito de queimar calorias...
As noites alimentavam o seu silêncio madrugada afora e invadia de desejo o quarto da patroa...Você tem sorte de ter um emprego, Quitéria...um cantinho pra repousar sua cabeça...Nunca entendera isso como sorte, mas como capitulação dos seus dias de embriaguez... Nunca mais seria esquecida...
Destrancou lentamente a porta da sala...Ainda teve tempo de olhar pela última vez nos olhos do patrão...Um estampido oco, quase surdo...O corpo da patroa deslizando pela parede do corredor tingindo de escarlate sua camisola de seda vinho...De quem era a sorte...A agenda da patroa com todos os telofones do marido esquecida sobre a mesa da sala...Suas mãos...lâminas de cortar batatas...O que era a sorte...O vulto de um homem nu cambaleando em direção à porta da cozinha...De quem era...Batata frita...O que era...Suco de clorofila...a sorte...
Por Mônica Z.
Para embalar

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Ninguém

Suas mãos eram pretas e enrugadas...Pareciam maçanetas enferrujadas...oxidadas pelo tempo...mal conseguiam segurar um tubo de pasta de dentes...pareciam grandes demais...exageradamente desproporcionais...Grades que esmagavam sua tentativa quase invisível de mobilidade... Tinham sido construídas junto às diversas casas que erguera num tempo distante que esquecera atrás do olhar nublado...
O rosto ressequido o expunha à afronta de um mundo dividido e astigmático... fronteira entre a prática e a teoria carcomida pela febre dos dias...cegueira noturna fora das estatísticas da plasticidade da mídia...A camisa semiaberta abria-se para um mundo fechado a céu aberto...Sentia-se culpado por estar no mundo e ter com o que comprar um tubo de pasta de dentes enquanto muitos não o tinham...Usara bisnaga de alumínio...e agora as bisnagas eram de plástico...Diziam-se mais práticas ao manuseio tão escorregadio a suas mãos tão culpadas...
Seu rosto carregadado de histórias pedia licença para entrar nos recintos tão sobressalentes a suas experiências tão em desuso diante da vida...A tecnologia deixara-o completamente imóvel...Vagabundo inoperante...vomitavam os vizinhos dos botequins cheirando a cachaça...Era só um rosto esgueirando-se pelas esquinas do indizível...Erva daninha da razão...semente imberbe entre pedregais...
Tinha medo do raciocínio exposto oscilando entre o tempo e o nada... Mastigava os dias como quem pede licença à encruzilhada do destino que se interpõe à sorte e depois reclama à vida os danos à alma... Filha da puta... Não sabia a quem xingava...se a ele ou à vida... Talvez fossem uma só coisa... Não...há muito a vida o abandonara à própria sorte... Fizera dele um hóspede do tempo...um títere no mundo...
As folhas secas do inverno que se abriam à passagem da primavera arranhavam o seu rosto como palavras sem vogais por entre os dentes... Chegara o tempo e com ele a tecnologia viera cuspir em sua cara a sua desqualificação territorial...A desfunção da contingência... A inadequação ao movimento rotativo que impulsiona o mundo...Seu mundo não era dele...sua vida fora leiloada num consórcio de automóveis...Estava na estrada sem resposta...
O rosto atrás do homem...o homem atrás da vida...Punhal nas costas...Navalha na carne...Corte longitudinal protuberante ao espaço...Decomposição da esperança...Era a sobra...a sombra...a febre dos dias...Ferrugem sobre os trilhos...A esfinge depois do homem...A vida atirada no abismo... Era o próprio mito...indecifrável...devorou-se...
Por Mônica Z.
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segunda-feira, 25 de junho de 2007

Adelaide

Às vezes o cheiro da terra ia pelos ares como se um vendaval varresse a vida depois de muitas e muitas mortes. Metonímias e metáforas misturavam-se. Era o congresso do indizível à beira da falência do nada...Era nessas horas que Adelaide sentava e olhava fundo nos olhos do mundo questionando a resposta tão sem vida nos braços de uma dor tão dolorosa. Adelaide...subir escadas...Adelaide...descer escadas...Nada quase sempre tudo...tudo quase sempre nada...
Às vezes sentia-se extremamente underground...Ficava horas sentada à beira de seu abismo pessoal olhando meticulosamente nos olhos do tempo...Parecia que o silêncio de sua vida ecoava vazio dentro de sua história...Viver é difícil...sobreviver muito mais ainda...Um dia ouvira seu pai cantarolar uma música que dizia que o mundo era um moinho...o dela era uma cangorra enferrujada que nunca subia...
As crianças chegariam cedo no sábado...Deveria ser uma boa mãe...Mãe deve ser sempre boa, compreensiva, acolhedora...Deveria demonstrar alegria ao reencontrar os filhos...É o que todos esperam de uma mulher que tem filhos...Você só vai saber o que é ser mulher Adelaide, quando for mãe...Tivera três...teria que ser uma supermãe...mas não era...e não fazia nenhuma questão de sê-lo...
Chegaram...Abraços que escapam aos beijos...beijos que escapam aos braços...dias que escapam à vida...vidas que escaparam à vida dos seus braços...Nada mais importava tanto assim...Se perdera a guarda dos filhos para o cretino do Tião, cretina mais ainda fora ela ao acreditar em promessas de meio-dia...Não trouxe sorte...Tinha raiva de Tião...de seu caráter tão sem importância...de seu vale-quanto-pesa...tinha raiva de suas lágrimas quando via as crianças... Pesou a vida...pesou o câncer...pesou a conta gorda da vadia...pesou a história...Os filhos chegaram abortados...partindo...sem motivo de estar ali...sem coração...sem sangue ou veia...Foram embora da mesma forma que chegaram...horizonte pro nada...Feliz Natal Adelaide...Sobe escada...tão vazia...Desce escada...tão vazia...Adelaide...
Por Mônica Z.
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segunda-feira, 28 de maio de 2007

Sebastião

O louvor já tinha começado e os meninos ainda não tinham descido...não era costume deles se atrasarem assim, mas devemos sempre estar à espera do improvável...ele pode aparecer a qualquer momento...de forma natural ou encomendado por alguma contingência daquelas que pedagogas adoram utilizar para justificar o fracasso da educação ou da evasão escolar...
A igreja estava cheia...era melhor começar assim mesmo com alguma palavra antes que as pessoas começassem a ir embora...Irmãos...Nunca fora irmão de ninguém...essa forma de tratamento que cabia a ocasiões como aquelas era simplesmente um ato instituído, oxidativo da realidade mesmo que aparente, mas circundante...Nunca tivera irmãos...de sangue foram cinco...de morte também...
O ciúme sempre fora o têmpero de suas atitudes mais inesperadas. Nunca esperou a mulher por mais de 10 minutos em casa...era esquina e escândalo. Se a demora tivesse relacionada a casa dos parentes da mulher era bem pior...os safanões já começavam no portão e neste dia a noite não dormia...Às vezes parece que a vida estabelece uma espécie de parâmetro para se saber o que é estar ou não feliz...Na casa de Sebastião era assim...no dia que Sofia não apanhava era dia de paz...a felicidade sorria na vida daquela gente tão...família...
Foi assim que de paz em paz Sebastião se tornou o bom pastor...já não batia tanto assim em Sofia...sua mão até se esquecera do como era bater numa mulher...bater na filha não era a mesma coisa...Um dia debruçado em sua janela Sebastião sentiu-se bom...bom como nunca se sentira antes...bom de doer os ossos e até o coração...bom no fundo da alma...bom de verdade...Nesta noite quando olhou o relógio deu por conta que Sofia já se atrasara 5 minutos...Não...não...nada nunca mais tiraria a sua paz...quando Sofia apontou na esquina Sebastião sorriu de um sorriso sábio e enigmático...Bem-vinda ovelha desgarrada...Aquele que não tiver pecado que atire a primeira pedra...Vós sois a ovelha desgarrada, Sofia...
Naquela noite Sofia não apanhou tanto como nas outras noites...a noite até dormiu...Antes que ela saísse para o trabalho Sebastião a chamou de cantou e lhe disse Vá Sofia, e não peques mais...Sofia deveria sentir-se agradecida no entanto cuspiu-lhe na cara o gosto amargo do corpo e da alma...Sebastião chegou a levantar-lhe a mão mas não poderia trair-se a si mesmo...ele era bom...Vá Sofia...eu te perdôo...Sentia-se cada vez mais divino...iluminado...Naquele mesmo dia seu filho mais novo chegou mais cedo da escola...fora suspenso por agredir uma colega...
Depois de contar o ocorrido ao pai o menino levou boas porradas...Depois de pensar por longas horas Sebastião profetizou Deixai vir a mim as criancinhas...Daquele dia em diante ele passou a olhar para os lírios do campo...alimentar-se da plasticidade quotidiana da vida...
Debruçava-se sobre o dia e já era noite...acordava à noite e já era dia...Sebastião dizia-se hóspede do tempo...Segundo ele Sofia nunca mais fora a mesma...Ela precisa de aconselhamento...Seus constantes atrasos transformaram-no numa implacável máquina de guerra...Surrava a mulher até a pobre desfalecer...depois acendia um cigarro e pensava...Quem ama educa...Sofia fora internada algumas vezes com várias costelas fraturadas e alguns dentes quebrados...No mesmo dia Sebastião levava-lhe flores...Sem ressentimentos...Sofia era a própria retórica do silêncio...
Um dia ao sair do hospital Sebastião pensou...Bem aventurados os pacificadores...era isso o que ele era...um pacificador...Ouviu o chamado que vinha da igreja...entrou...não foi a frente porque não tinha pecados...tanta convicção impressionou os fiéis...em 1 mês Sebastião era o bom pastor da Igreja da Sabedoria...As conversões tornaram-se um hábito naquelas cercanias...Sebastião perdoava os mais diversos pecados...Vinde pecadores...
Assim que saiu do hospital Sofia teve que converter-se à doutrina sebastiânica...Ela e os meninos tornaram-se os responsáveis pelo louvor...da tesouraria e da pregação ele mesmo tomava contas...A família de Sebastião passava mais tempo na igreja do que em casa...Sebastião dava aconselhamento o dia inteiro...na porta de entrada de seu gabintete um versículo chamava a atenção... Maridos amai vossas esposas. Esposas respeitai vossos maridos...
Certa vez Sofia disse-lhe que não queria mais ir à igreja...Apanhou tanto que vomitava sangue...Sebastião gritava ser aquilo as impurezas da carne...Devido à gravidade dos ferimentos Sofia ficou vários e vários dias sem trabalhar...seus dois filhos tiveram que assumir o louvor da igreja...Lá o que se sabia era que Sofia tinha levado um grave tombo e que estava impossibilitada de receber visitas...Os irmãos prontamente se puseram a orar pela quebra daquela maldição...Oravam dia e noite...dia e noite...dia e noite...até que um dia a noite amanheceu...
Um caminhão com placa de Vitória do Espírito Santo parou em frente a casa de Sofia...Ela passou a mão nos meninos e em tudo que era seu...pegou um prego furou a parede da sala e ali pendurou a roupa do bom pastor...Olhou em volta...na corda nem um pregador...Foi ao banheiro ajeitou o cabelo, enxugou as lágrimas, levantou o peito...Olhou em volta e deparou-se com a imensidão de sua alma...Dizem que foi para o Morro da Chácara do Céu...já Sebastião...
Por Mônica Z.
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segunda-feira, 19 de fevereiro de 2007

Aidê

Ai ai Aidê, olha joga bonito que eu quero aprender...
Aidê fazia parte do nosso patrimônio histórico...era bonita, forte, doce, firme, tranqüila...fazia muitas coisas como ninguém...uma delas era jogar capoeira...Todo sábado a roda ficava maior do que nos outros dias da semana...era Aidê que jogava bonito pra gente aprender...
Um dos ensinamentos da capoeira consistia em ensinar a fazer sempre...o que se aprendia hoje, deveria ser passado a frente...quem aprendeu hoje, amanhã já deveria ser alguém que ensinaria o que hoje aprendeu...a estratégia era valorizar não só o aprendizado e quem ensinava mas também quem aprendia...toda essa troca visava tornar as pessoas mais solidárias e independentes de forma que aplicando seus conhecimentos a outros aprendizes nunca perdessem a noção de que eram aprendizes também...
Aidê jogava como ninguém...pernas, braços e vida em média rés...uma angoleira que no suor que brotava do rosto filosofava os princípios da capoeira, seus ensinamentos e mandingas...Às vezes a surpreendia em silêncio, mastigando a vida...A capoeira passa por avanços e recuos...avançar nem sempre é a melhor estratégia...recuar muitas vezes é sábio, noutras; estupidez...É preciso estar atento ao inimigo...e isso nem sempre significa não perdê-lo de vista...simplesmente não deixar que se aproxime...Jogar capoeira é jogar com a própria vida...com o que ela nos traz, com o que ela nos leva e com sorte...
Era preciso muita concentração para não ser vencido na roda por Aidê. Seu golpe maior era sua própria sedução...ninguém escapava...Ela nascia em seu olhar e espalhava-se por todo seu corpo enquanto o suor contornava suas curvas...Nossos olhos embriagavam-se nas ondas daquela maré cheia e o golpe vinha certeiro...quando dávamos por nós estávamos no chão...Ai ai Aidê...Aidê era a professora e a mestre dos nossos sonhos...
Dias passaram e Aidê não apareceu na roda...fomos a sua casa e dela ninguém sabia...Aidê tinha três filhos e deles também ninguém sabia dar conta...a manhã virou tarde...a tarde, noite...a madrugada então nos abraçou...Durante vários dias procuramos Aidê...não íamos mais à roda...jogar ficou em segundo plano...a ausência de Aidê nos preenchia dia e noite...
Um dia larguei os amigos no bar do Boca e saí pra caminhar... procurava vestígios de mim pelo caminho...a vida era labirinto e naquela noite eu juro que queria topar com o Minotauro...
Quase isso...
Reconheceria Aidê mesmo de hábito...seu olhar...o golpe certeiro...Não era a pistola na minha cabeça que me fazia suar...mas reconhecer ela ali, viva, me golpeando na alma...Ai, ai Aidê...Enquanto os outros reviravam meus bolsos, arrancavam relógio, pulseiras e cordões, meus olhos não tiravam o olhar dela dos meus...eu não sabia que seus filhos já eram tão crescidos...até que o mais novo a entregou...Vãobora, mãe...Mesmo debaixo da touca ninja pude ver seus músculos tremerem...Aidê passou a mão em tudo rapidamente, jogou dentro do carro que nervoso acelerava...
Deslizou suavemente o cano do revólver pelo meu rosto, tirou a toca ninja e me beijou...seu suor misturou-se à minha lágrima...sumiu no meio da noite...me golpeou de morte por toda vida...
Por Mônica Z.
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terça-feira, 30 de janeiro de 2007

José

Da minha vida já nem lembro mais...do que restou dela...talvez...acho que as pessoas lembram mais dela do que eu...e isso faz uma grande diferença...Não estou fazendo questão de dizer o que está certo ou errado nessa história toda...o cansaço você pode ver no meu rosto e a dor você pode ler em meu olhar...o resto tá tudo aqui dentro...e de mim ninguém mais sabe...
No morro às vezes os sonhos nascem abortados...como se de repente você tivesse que renascer em outro lugar para resonhar a vida ou o que se espera dela...sem direção...quase sempre o que nos resta é solidão e silêncio...
Bom dia seu José...O silêncio era sempre a resposta...a de sempre...a de todos os dias...O que fazia um dia ser diferente do outro seu José não sabia. A vida tornara-se igual há muito tempo...E naquele momento a diferença entre falar e estar calado pouco importava...
O tempo que estava na cama era contado por um ritual pouco convencional. Ia uma vez por semana ao banheiro...Quando o batalhão de vizinhos chegava era terça-feira nove horas da manhã...Dois nas pernas...outro no dorso...mais dois nos braços e na cabeça...José ficava ali na cadeira higiênica durante horas amparado por dois vizinhos para que não escorregasse e viesse a cair no chão...Nunca gostou de incomodar ninguém, mas nunca incomodou tanto quanto agora...Sentia-de medíocre...menor...nunca gostou de depender de ninguém...Sempre procurou dar um passo a frente dos problemas...Talvez este tenha sido seu grande erro...dar um passo a frente...Recuar às vezes é sábio...ir em frente...suícidio...
Nunca aceitou com gratidão a benevolência que havia no morro por conta de um carnezinho que mensalmente deveria ser creditado em nome de uma instituição filantrópica que nunca existiu gerenciada por um tal Dequinha...Sentia sua liberdade cerceada em metros quadrados e por conta disso reclamava-a a todo tempo, convocando a comunidade a se rebelar contra aquilo que ele chamava de abuso de poder auto-instituído. Tudo em nome de uma suposta segurança comunitária...
Tinha que moralizar o morro...dar um basta nos absurdos ali sitiados em nome do nada...Era uma terra de ninguém...não morreria ali subjulgado a um mundo que não o acomodava...mas que julgava seu...possivelmente era sua história...uma história mal contada...pelo avesso...pela metade...mas sua...
No dia seguinte levantou cedo...Caneta, lápis, identidade, cartão de confirmação. Dois dias depois saía o gabarito no jornal. Sua aprovação para soldado da Polícia Militar injetava nele um sensor ainda maior que a sua indignação rotineira. Fizera dele um projétil pronto para disparar a qualquer distância e em qualquer momento. Não ficaria pelos cantos se escondendo feito um rato que acabou de deixar o esgoto...
A farda pesou...Lá estava ele ostentando o cidadão cinco estrelas que era, fazendo das palavras a sua maior arma...Tirou fotos com a molecada, e abraçou seu Higino do açougue e seu Vicente da quitanda...Os dois o viram nascer e sabiam muito bem do quanto se esforçara para chegar até ali...da luta de sua mãe contra o câncer logo após o seu nascimento...do suícidio de seu pai logo após a morte da mãe...
Seu Higino e seu Vicente eram as referências que José nunca perdera de vista...Acompanharam sua vida tumultuada como filho adotado de uma família que como dizia seu Vicente não tinha merda no cu pra cagar. Para seu Higino aquela família jamais deveria tê-lo adotado. Fizera dele justamente o que ele sempre fora. Um filho adotivo...
Estudara sempre em escolas públicas, enquanto seus dois irmãos brancos estudavam em escolas particulares. A diferença era o marcapasso de sua rejeição. Era como se isso tivesse sempre que ficar bem claro, bem marcado. Gratidão...esta deveria ser sempre a palavra de ordem à sua vida outrora tão ordinária...Quando fez dezoito anos voltou para o morro. Seu Vicente e seu Higino o ajudaram e o mativeram ali...
A rotina do morro no entanto causou-lhe náuseas. Ânsias constantes de vômitos. Ele bateu de frente com a solidão e colidiu com todas aquelas inquietudes que estavam dentro dele adormecidas. Não gostava do que via. A vida custava-lhe cara demais para tão pouco. Não importava quem inventara a arma, o gatilho fora apertado e era ele o alvo...
Não chegaria em casa...Dequinha soubera da novidade rapidamente...Um único disparo...Trauma raquimedular...Suas pernas tombando jogava por terra todos os seus sonhos...Sua liberdade fora recolhida às cochias da dor...Sua ousadia virou tempero nos botecos das esquinas...
Não entendia a vida como circunscrita a papéis específicos para proteger a própria pele...Faria tudo de novo...Não seria ele se não o fizesse...Se ficasse se escondendo como fazia tantos amigos seus, seria o que a vida sempre fora para ele...nada...Que fosse dele então o primeiro passo...Foi seu primeiro e último passo em direção à liberdade...
Por Mônica Z.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2007

Jurema

Sua beleza era inspiração para as telas de Di Cavalcanti...Sua silhueta se confundia com algumas curvas do morro...os que a viam diziam que fora bem criada e que aquele com certeza não era o seu lugar...A beleza de Jurema...seu sorriso...suas mãos...o andar de Jurema...seu corpo...sua voz...sua educação...Jurema era poesia em verso e prosa...Ah, Jurema "se todos fossem iguais a você/que maravilha viver... "
Quando descia, o morro suspirava...como era bom ver Jurema passar...acompanhar seus passos em slow-mochion...Parecia um minuto de silêncio no Maracanã...Nas quebradas, nos bares...os mais diversos comentários...Para que dentes...deixa Jurema mastigar...para que pernas...deixa Jurema andar...para que mãos...deixa Jurema aplaudir...para que promessas...deixa Jurema rezar...e os malandros se encostando pelos cantos faziam rezas e quebrantos...Jurema era inspiração para o dia inteiro...
Meu Deus, eu quero a Jurema que passa...
Jurema era uma espécie de amuleto dos nossos dias nublados...nunca mais subir o morro foi sinônimo de cansaço...Jurema nos banhava com sua presença sempre tão familiar que custava-nos a acreditar que o que havia antes de Jurema era vida...Ela enebriava os nossos sentidos...podíamos ficar horas em silêncio...catalépticos...simplesmente alimentados pela sua imagem que era nosso culto e cartão-postal...
Nos finais de semana ver Jurema era como clássico no Maracanã...Lá vinha Jurema...e a torcida Olé!!! Jurema driblava um...dois...três...dava um chapeuzinho em outro...e a torcida Olé!!! Quando matava no peito...a multidão se acotovelando ia ao delírio...e a galera Ahahah!!! e Jurema passava...e a galera Uhuhuh!!!
Um dia Jurema desceu o morro e nunca mais voltou...O morro entrou em colapso...quarentena...Todos os dias tornaram-se quartas-feiras de cinza...Durante quarenta dias e quarenta noites expiamos nossas corpos das mais diversas formas pelas vielas imundas do morro...Esperamos, órfãos, pela volta de Jurema todos os dias dos nossos pecados...nossa culpa...nossa tão grande culpa...
De nada sabíamos de Jurema...da sua vida...do seu passado...de onde veio...Quem era Jurema para além dos nossos cios e desejos...para além da nossa vida tão mediocremente programada... Um dia ela voltou...e a torcida Ahahaha!!!...As pessoas em polvoroza tropeçavam umas nas outras...Seu Manoel vendeu fiado...Pedro Neco ficou na meia barba...Nininha - a manicura - levou no mínimo três bifes para casa...seu José vendeu sardinha por dourado...Mas Jurema não estava sozinha...junto dela...a polícia...
Toda sua beleza parecia aturdida ou atormentada por alguma coisa que não conseguíamos ler tal era o nosso estado de graça...Na verdade acho que nunca conseguimos ler Jurema para além dos nossos olhos de gula e luxúria interiores...Jurema ensaiou uma tabelinha com a polícia...mas a bola foi pela linha de fundo...
Arrombaram o barraco...Deu no jornal...
Mãe mata filho que chorava de fome.
Jurema foi pra cadeia...e nós para o orfanato de nossa miséria interior...Uhuhuh!!!
Por Mônica Z.

domingo, 14 de janeiro de 2007

Francisco

Francisco era Chico do morro...era preto...não era negro....tampouco escuro...era preto...escura era a noite...e o dia era claro...Num gosto dessas coisas, não...negro, escuro...sou preto...é cor, ó...de que cor você é, 'sa menina? Branca...morena clara...Mas, que morena clara que nada, menina...você é branca e eu sou preto...sabe o que é isso...é falta do que fazer de gente que estuda demais...fica pensando bobagem, aí inventam essas coisas...tinham é que inventar cura pra doenças...aí o compadre, ó...tá morrendo aí, sozinho...
Seu Francisco era o próprio hálito da manhã dissolvido na inconformidade dos dias tão descartavelmente contemporâneos...Eu nasci Francisco de pai, né...meu pai também era Francisco...mas desde miudinho que sou Chico...Chico do querosene...do tecido...da sardinha...mas só maromba, né...não é essas porcaria de hoje, não...sardinha só graúda...era bom pra fazer pirão...tá vendo essa casa aqui...construí tudinho vendendo peixe...fui levantando um cômodo aqui...uma parede ali...é simples, mas é minha...porque ó, minha filha, casa alugada é que nem mulher bonita...um dia vai embora...
Para Chico não havia nada pequeno...tudo era miudinho...era um de seus apelidos...véio zuza, preto velho, negão, pescador...Para cada um deles seu Chico desfiava seu arsenal de palavras impublicáveis que fazia rir qualquer um que tivesse por perto...Eu sou Francisco...Chico, né...Chico preto...fica com medo não, 'sa menina...a onça é braba mas não morde...Seu Chico...onça braba....Parecia mais um urso carente...Uma de suas principais características era passar da raiva à alegria em segundos...Nunca fui a um hospital...nunca operei nadinha...mas, ó, é tudo interinho...até os dentes...
Seu Francisco morava no morro há bastante tempo...o suficiente para ter que conviver com aqueles que se achavam os donos dele...No meu tempo não tinha dessas coisas não...tinha né, mas não era assim esse descaramento...essa pouca vergonha...isso é falta do que fazer...não é falta de trabalho, não...é falta de uma boa surra...no meu tempo a gente capinava quintal...limpava fossa...e tinha que ajudar em casa se não ó, o coro comia...era pau, era fio de ferro, era chinelo, era vara de goiaba...essa então...ficava prontinha debaixo da cama de minha mãe esperando o primeiro que saísse dos trilhos...e os bobo aí, ó, tudo com essas porcaria na mão...na idade deles eu tava era passando goma no cabelo, borra de café na mão pra tirar o cheiro de peixe pra sair pra namorar...
Respirava fundo...seu olhar percorria a favela quase em câmara lenta como alguém que tendo vivido a dignidade e a grandeza de uma época, custasse a acreditar naquela triste e revoltante realidade...Ali parecia perder os sentidos...Esses merdas são uma cambada de fio-da-zunha...ah uma surra...isso é senvergonhice, minha filha...
Talvez agora seja aquela parte em que eu tenha que dizer que seu Francisco era uma pessoa muito especial...mas ele era mais que isso...era Chico...cidadão comum com pouca ou nenhuma instrução e que aos 80 anos mantinha-se vivo e lúcido, apesar de achar que já vivera o suficiente... Só tô aqui contando tempo, minha filha...
Contar o tempo era o que seu Francisco mais fazia...sua esposa, D. Maria Célia, morrera há doze anos...Os meninos tão pra lá...ninguém aparece mais por aqui, não...só o mais novo que às vezes vem no Natal...mas nem entra...fica por aí ciscando...depois vai embora...não tenho mais gosto nessa vida, não, minha filha...Aquelas pesadas verdades soavam como duras pégadas no peito de seu Francisco e pareciam doer-lhe profundamente...inquietava-se como se quisesse se livrar delas...Tem jeito não...eu não criei filho pra isso...no meu tempo era muito diferente...
Há determinados momentos na vida da gente que se você romper o silêncio ele te fere...nesses momentos a única coisa a ser fazer é não fazer nada...Quando eu morrer não quero ninguém no meu enterro...Foi a sentença final...a lágrima rolou silenciosa...árida...seca...Quero não...
Chico sentava todos os dias em frente a sua casa no banquinho que fizera de caixote de feira, e ali ficava horas emudecido...pensativo...como um diretor reeditando as últimas cenas de sua história...seu rosto castigado pelo sol...seus olhos distantes e profundos...seu sorriso profundamente escasso...suas mãos calejadas...era isso a vida...Tô cansado, menina...tô muito cansado...
Chico era digno demais para que eu tenha ainda que dizer alguma coisa...sua integridade...sua vida...as marcas do tempo desenhadas em seu rosto...sua indignação diante da falta do que fazer do ser humano...os seus valores éticos ainda que ele não tivesse a mínima idéia do que aquilo significava era o que fazia dele...o velho Chico Preto...Francisco...
Por Mônica Z.
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segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

Antônio

Averso à noite...Antônio era uma espécie de mutante junto aos amigos...Nunca fora de acordar tampouco de dormir tarde...festas, nigths eram até às onze no máximo...meia-noite já era madrugada...Contrário às manobras ditas fáceis que rolavam no morro não era bem visto pela galera que fazia delas sua própria vida...Era um otário...um mané...bundão...devia ser veado... Era a voz que no morro ele ouvia...
Às provocações Antônio respondia com o silêncio...não acreditava no velho ditado de que quem cala consente...dizia que o silêncio não era sinônimo de consentimento mas de estudo, investigação e muitas vezes de sabedoria...Sentia-se um cara atípico na vizinhança...adorava ensinar matemática...Muitas vezes era ele quem safava boa parte da comunidade de ser reprovada...crianças, adolescentes e adultos...nunca cobrou por uma aula nem se gabava disso...Antônio tinha noção de sua desimportância social...Sua figura prosaica era facilmente fagocitada pelo que ali importava...o poder instituído não vinha do intelecto mas da força...ainda que covarde...ainda que injusta...
Uma virada de mesa era tudo o que queria...damas, xadrez...sabia matematicalizar a vida, transformar letras em números...Mas talvez esse fosse um jogo antigo...Em qualquer lugar o reconheceriam por um simples número de identidade...Identidade...para além do samba que curtia com alguns amigos na casa do Biza, Antônio com nada se identificava no lugar onde morava...Se tivesse grana já tinha dado linha há muito tempo dali...Subir ladeira todo dia...acordar com rajadas de metralhadora na cabeça...ter sua casa invadida por neguin querendo cobertura...ser chamado de merda simplesmente por não querer multiplicar o que ele não achava certo...Morriam aos cachos pelas ruelas do morro...10, 13, 18...a idade não importava...Na cartilha do morro a lição era uma só...se ajoelhasse era pra rezar... não tinha segunda chamada...E o merda sou eu...pensava...
Havia no morro alguns grupos musicais...teatro...ongs que ganhavam espaços em jornais, revistas, televisão...Antônio sempre reagiu com bastante inquietação a esses contratos-propostas estabelecidos entre esses grupos e a mídia...Quando se apresentavam percebia que eram tratados como bichinhos exóticos prontos para fazer o bem em um mundo mau e cruel...
Esse maniqueísmo o incomodava e o asfixiava de forma lancinante...Eram vistos como se tivessem saído de uma verdadeira selva de pedra tal os olhares que sobre eles eram lançados...Não era valorização...era espanto à sua força e sobrevivência...
A oportunidade que lhes davam de mostrar seus excêntricos trabalhos era a confirmação simples e abnegada da civilização em se deixar seduzir pelos bichinhos amestrados...Era a propaganda mais fácil e sórdida de dar visibilidade à mídia de patrocinadores potencialmente brancos e civilizados, exercendo abnegadas cidadanias junto aos miseráveis... Era possível que naqueles dias as pessoas fossem dormir com a estranha sensação de que naqueles vales de sombra ainda havia vida suportável... gente que valia à pena...aquelas que lhes garantiriam a manutenção de seus ibopes...
Pensava nos valores mastigados um ano após o outro por seus professores em sala de aula...Bondade, amor ao próximo, respeito...É difícil ser bom no deserto quando tudo o que se tem para beber é a própria saliva...Um professor uma vez lhe disse que identidade era um conceito arbitrário...que toda identificação correspondia a uma exclusão em igual ou maior grau... Talvez isso devesse fazer de Antônio uma pessoa melhor...mais tolerante...Por um tempo até pensou assim...mas era ele sozinho ali naquele painel de vidro à prova de som...Identidade no morro - dizia - era arma na mão...
Teve oportunidade de declinar do alistamento...era arrímo de família...mas queria servir...não sabia se à pátria ou a si mesmo...Estava cansado...precisava de dinheiro...Sua mãe trabalhava como acompanhante de um senhor de idade há quase um ano e só voltava para casa de 15 em 15 dias...No começo disse-lhe que não iria se acostumar a ficar longe dos filhos...Com o tempo só aparecia de 30 em 30 dias...Há seis meses não a via...
Uma vez encontrou-a à noite na esquina de um shopping...Quando o viu sorriu de um riso nervoso...Dele não quis saber...Era como se ele estivesse atrapalhando alguma coisa...Logo um carro parou...Perguntou quanto era...Ela empurrou Antônio e o mandou embora...Cochichou alguma coisa no ouvido do sujeito que a mandou entrar...Foi a última vez que a viu...Nem pôde dizer-lhe que já era soldado do exército...que não era um merda como diziam...que iria seguir carreira...E seguiu...Durou seis meses seu pequeno mas honesto sonho...a dispensa coletiva viria em seguida...sem apelação...
A angústia daqueles dias devorava-lhe os sonhos...O seu sofrimento parecia devorar a sua bondade e sensibilidade...Suas noites foram consumidas pelo desespero de quando nada mais se tem a fazer...nem a perder...Sua mãe e irmã era sua única família... aquela que mostrou aos colegas quando foram a sua casa fazer o trabalho da escola pela primeira vez... Mas elas já não lembravam disso há muito tempo...Da irmã tudo o que sabia era que aos 15 anos atuava como a segunda mulher do morro...Quanto a mãe...
Passou a noite ruminando pensamentos antigos...Sonhos abortados de fantasias...Dispensou novas esperanças...não mais precisava delas...só o desamparo...o abismo lhe interessava...Nada mais do que o hiato dos seus desejos...dos seus dias...da sua vida...do seu tempo...Quem calava não consentia...Quem calava queria gritar...Não era um merda...
Matematicalizar a vida ajudou Antônio a entender muitas coisas..Menos a morte...
Do outro lado da rua em frente ao shopping uma mulher retoca a maquilagem depois de bater de frente com a manchete na primeira página do jornal...Reconhecia no rosto desfigurado do menino da foto as sobras de sua mísera identidade...Não precisara excluir ninguém...a vida se encarregara disso...
Respira fundo tentando conter as lágrimas mais uma vez...Um carro buzina...Retoca o rímel...Uma puta...de luxo...
Por Mônica Z.

domingo, 31 de dezembro de 2006

João

Faltava pouco tempo para descobrir-se de si mesmo... como se descobrir-se fosse arrancar a própria pele...escalpelar os próprios sentidos...entender-se era para ele um grande mistério...descobrir-se; desafio. Passava horas sentado na beira da cama logo que percebia-se acordado...talvez esta fosse uma de suas mais racionais descobertas...descobrir-se acordado depois do sono...Isso é palhaçada - dizia sua mãe - o que esse menino tem é fogo...falta do que fazer dá nisso...pensa demais...se trabalhasse não ficaria aí igual a um maluco olhando pra parede...
Ela jamais entenderia...ele não estava olhando para parede...olhava para além dela...e para além dela estava sua vida tão sistematicamente programada para ser e estar...Não contemplava a vida com os olhos materiais da mãe nem do determinismo dos irmãos e dos vizinhos...Esse garoto pensa que é melhor que a gente...fica aí dando uma de de nerd, de intelectual...isso é falta...Descobrir quem falava isso não importava para João...era uníssono...tudo era uma única voz naquele cortiço de merda...todos tinham uma só voz...e isso verdadeiramente não importava...
O irmão mais novo pulava da cama cedo e isso garantia-lhe algumas horas a mais olhando para dentro de si mesmo...era o único mundo onde ainda conseguia respirar sem ser interpelado por alguém...O pai morrera num assalto, a mãe disputava com as irmãs o título de vagabunda do morro, o irmão era conhecido na comunidade como Pegue-pague...por qualquer trocado prestava serviços à comunidade...homem, mulher... não importava...era só pagar...
Era para essa parede que João olhava...alvernaria...argamassa...concreto armado...muro salpicado de cimento arranhando por dentro as paredes de sua dignidade...No silêncio alimentava monstros e vampiros todos os dias de sua enorme vida...Terminara o ensino médio como o melhor aluno da classe em conteúdo e assiduidade...mas isso não lhe garantira muita coisa...bateu de frente no vestibular que prestara para arquitetura...queria endireitar o mundo, a vida, tudo...
Há cinco meses que saía quase todos os dias a fim de tentar conseguir um emprego que sua formação geral em escola estadual não lhe dera...estava cansado...cansado demais... Gostava de conversar com o pai...adorava vê-lo tocar seu violão: "Bate outra vez/com esperanças o meu coração/pois já vai terminando o verão, enfim/volto ao jardim/com a certeza que devo chorar/pois bem sei que não queres voltar para mim/queixo-me às rosas/mas que bobagem/as rosas não falam..." Sentia muito a presente ausência do pai...Sempre soube que ele não morrera em assalto algum...e essa era uma de suas descobertas mais dolorosas...sabia que o pai fora metralhado na casa do Tico depois de recusar-se a fazer sua contabilidade...Ao contrário dele seu pai tinha feito o curso técnico...mas isso também não lhe trouxera muita sorte...
Uma vez leu em um livro da biblioteca que..."Quanto mais esquecido de si mesmo está quem escuta, tanto mais fundo se grava nele a coisa escutada." A partir daí resolveu que iria dedicar-se a descoberta de si mesmo...deveria esquecer-se para escutar-se...Enquanto estudava procurava fazer isso na biblioteca...chegava mais cedo e ficava horas folheando aleatoriamente livros e mais livros...quando sua mente parecia sufocar, largava tudo e procurava sorver o que tinha sobrado...era isso o que importava...Quando concluiu o ensino médio já não tinha tanta disposição para folhear tantos livros...O que sobrara era ele...só ele...era preciso folhear-se...ler-se...
As festas de final de ano tinham um sabor de vazio...sua mãe sempre lhe dava o mesmo presente...uma camisa azul...uma ano após o outro...uma camisa azul...Naquele dia acordara diferente...quase um ano após a morte de seu pai precisava ouvir-se por dentro das paredes de concreto carmomidas pelo tempo...do chão lodoso e escorregadio do banheiro...do mármore frio e fétido da pia da cozinha...mas tudo o que ouvia eram os gritos de sua mãe e os gemidos de suas irmãs no bordel que se tornara a sala naquela noite...Ficou ali durante alguns segundos observando aquilo que seria um dos sete pecados capitais...uma folha...após...a outra...
Quando se está no cio, ninguém vê quem está ao lado...ninguém percebe nada... Era assim a sua família...sempre no cio de si mesma...Tomás de Aquino ou Moisés...as tábuas da lei...Não matarás...com sorte tudo acabaria bem...fora assim com seu pai...E no silêncio ensurdecedor da noite...O fuzilamento de Goya...respirou aliviado...Tudo em paz...
Por Mônica Z.
Para João Freitas.

sábado, 23 de dezembro de 2006

Beatriz

Dizia que falando era melhor que calada...ficava horas desenhando nos cômodos incômodos de sua mente cenas possivelmente de uma obra aberta ou inacabada...o cenário não era dos melhores...um quintal com bastante capim ao redor, um cachorro magro e um pé de carambola fora da estação...Quem passasse na rua e olhasse para ela, diria que estava conversando com seus botões, como era costume dizer...
Beatriz era mãe de três filhos...de nenhum tinha conta...Aos 17 nascera a menina, aos 18 já tinha um casal; a outra menina só viria aos 25...dizia que não seria para os filhos o que sua mãe fora para ela...mas parece que o fascínio que a vida exercera sobre ela fora mais forte que o seu desejo em reparar erros do passado...diziam uns...
Mastigava horas sentada na única entrada da casa...criava cenários em seu mundo de sonhos...situações embaraçosas saltavam-lhe à imaginação...suas personagens estavam sempre sob os mais diversos tipos de perigos...os mais diversos conflitos...Era nesse cenário que ela surgia como a grã-protagonista e solucionava todos os problemas como num passe de mágica...em seguida, dotada de extrema modéstia, saía de cena sem fazer qualquer alarde...como cabe aos grandes heróis...
O único problema para Beatriz era que suas personagens não tinham rostos...por mais que insistisse em buscá-los...dizia que o problema era a fumaça...Nunca consigo vê eles direito...também devem ser surdos...toda vez que tento falar...nunca me olham...caminham pra lá e pra cá...deve ser a fumaça...
O tempo havia castigado demais Beatriz...de sua história o que se sabia - diziam outros - é que sempre quisera ser mãe...que tivera seus três filhos muito cedo, mas que sem condições de criá-los acabaram sendo entregues a outras famílias...
Beatriz não gostava de falar sobre isso...Da minha vida cuido eu...só eu sei...Não demorava e as lágrimas desenhavam em seu rosto cansado uma Beatriz que suas personagens jamais veriam... Uma vez propûs-lhe dar voz as suas personagens...Disse-lhe que se ela quisesse eu poderia tentar responder às perguntas que ela fizesse a elas...Séria e desconfiada ao mesmo tempo, perguntou como eu saberia as respostas...Falei que iria tentar saber...Tá bom...vamos ver...vamos ver...Respondeu de mansinho como quem tragasse os próprios pensamentos...
No dia seguinte cheguei cedo à sua casa...o cheiro do café fresco enchia todo o seu pequeno quarto... muito tempo que não faço café assim...fiz muito café...comprei leite e pão pra todo mundo...E como você sabe que eles gostam de café e de leite, Beatriz? Porque acho que eles são parecidos comigo...respondeu num misto de perspicácia e ironia...
Beatriz era sábia...alimentava seu tempo com uma memória que mesmo inventada, preenchia suas inquietudes sensoriais...e era nesse universo que construía suas histórias nas quais sempre surgia como uma espécie de mulher- maravilha. Era isso...Beatriz só conseguia livrar suas personagens de todos os perigos que lhes sobrevinham porque as conhecia como a palma de sua mão...Beatriz sorriu como se eu tivesse descoberto seu grande segredo...
Beatriz...Beatriz...
Eles chegaram...É Natal...estão fazendo compras...e eu tô ali com eles também...disse ela com a voz bem cansada...Imediatamente perguntei a Beatriz o que ela gostaria de saber...de perguntar. Ela pensou...pensou muito...como se pensar fosse a última coisa que faria em sua vida...Quero saber o que eles querem ganhar de Natal...Beatriz já estava muito fragilizada pelo peso de seus dias...então disse-lhe, abraçando-a lentamente...Um abraço...tudo o que querem é um longo abraço...
O que estão dizendo agora... Estão agradecendo pelo leite...mas preferem café a leite...assim como você...Ela sorriu...E o que mais eles estão dizendo? Estão dizendo que te amam...que te amam muito, Beatriz...Nunca passei um Natal tão feliz...Recostou sua cabeça em neve sobre o meu peito...fechou os olhos lentamente...ainda alimentados pela sua primeira e última ceia de Natal...
Por Mônica Z.

sábado, 9 de dezembro de 2006

Verbum

Às vezes parece que no morro acontece tudo por acaso...basta amanhecer...mas não é assim...tudo no morro tá muito bem organizado...e isso de certa forma sempre me assustou...sempre achei que sabiam um pouco mais do que meu nome...Bom dia, professora!?Nunca gostei de responder a pessoas que fazem de seu cumprimento uma provocação...olhei friamente para...nem seu nome eu sabia...Você é muito marrenta!
No morro muitas pessoas agem como verdadeiras entidades...são as donas da situação... não importa quem você seja, sempre terá que bater cabeça para elas, pedir a bênção...são as donas da entrada e da saída, da vida e da morte...Tá difícil hein professora...todo dia passando por aqui sem pedir a bença...BÊNÇÃO...emendei...
Silêncio...
Aprendi desde cedo que quando o mistério é grande a gente não desafia... Só me dei conta quando ele já estava na porta da cozinha. Parecia mais uma central telefônica...nunca vi tantas guias em um só pescoço...CONTAS...disparou...
Silêncio...
Tinha fechado minha casa há alguns dias e alugado um barraco no alto do morro...Às vezes para confrontarmos certos vampiros precisamos de entrar em seu castelo... e sob o domínio deles ir abrindo as cortinas bem devagar até que por completo desapareçam...Disse-lhe que não tinha qualquer interesse em seus negócios...Apesar da entrada indelicada não parecia disposto a querelas...
Joás - era o seu nome - não sabia ler tampouco escrever e achava que por conta disso estava sendo passado para trás em seus empreendimentos. Disse-me que pagava bem...Achei que tava entrando numa grande roubada...Pedi que fosse embora...que não era alfabetizadora, que não tava a fim de falar nem ver ninguém... Por um instante ele me olhou como alguém que lhe tivesse tirando o direito à vida...
Um mês depois - sob o mais absoluto sigilo a pedido dele - Joás já sabia escrever razoavelmente o seu nome e algumas frases completas. A leitura foi mais sacrificante...no entanto, para alguém com 21 anos até que não foi tão mal...
Muitas vezes fazia relações equivocadas entre alguns termos, mas sua determinação em aprender era de certa forma o combustível de que todo professor precisa para dar continuidade a seu trabalho...Consegui alguns livros e começou a ler pequenas histórias...soltava gargalhadas sempre que conseguia ler todo um período sem gaguejar...Cinco meses depois resolvi passar-lhe algumas noções de morfologia e sintaxe...
Ficava fascinado quando conseguia conjugar todo um tempo verbal e dizia que o modo indicativo era o maior x9...Se encantava pelos termos essenciais da oração, e dizia que o sujeito desinencial era um sujeito esperto...sempre batia o ponto mas nunca botava a cara...
Um dia apareceu com uma pulseira em ouro onde se lia...VERBUM. Falou que era assim que seria chamado daquele dia em diante...Verbum...palavra...Agora professora eu sou a voz do morro...Perguntei-lhe o porquê do latim...Vi num livro seu...achei bonito...palavra - completou. No último dia de aula improvisei um certificado de conclusão do Curso Palavra e dei-lhe depois de um longo abraço que nos irmanou em uma única história...Falou que era de Recife...que seus pais estavam na Paraíba e que tinha vindo para o Rio para tentar a sorte...
Não deu...
Tínhamos gostos musicais parecidos...reggae, blues...e de repente não sei de onde ele surgiu com aquela frase rock'n' roll lullaby...É uma música...minha mãe cantava pra mim quando eu era criança...
No final da tarde Verbum colocou sobre a mesa algumas pequenas pilhas em notas de 50 reais...disse-me que era muito pouco diante de tudo que tinha aprendido...Disse-lhe que não era aquele o pagamento que eu queria...ele não entendeu... Queria uma festa...uma festa com todos os convidados de cara limpa e literalmente desarmados...inclusive ele...
. Eu vi a esfinge nascer em seu olhar...
No dia seguinte uma melodia enchia todo o morro...lá estava ela...rock'n' roll lullaby...E aí professora!!! já viu a galera?...todo mundo na linha!!! Confesso que não esperava...tava todo mundo lá...tinha alugado caixas de som e improvisado um salão de festas no campo que ficava no alto do morro...ele tinha até garçons...falou que eu poderia checar...Tudo limpeza...
Acredito que o grito é muitas vezes o eco do nosso próprio silêncio...não sabemos a que horas ele vai sair...mas ele está ali...pronto para ser detonado...aquela era a minha epifania...tava na hora de ir embora...A festa acabou na alta madrugada...o morro era a antítese de si mesmo e emprestava a toda aquela comunidade a sua própria metonímia...tava limpo...calmo...desarmado...
No dia seguinte entreguei o barraco...Verbum estava na esquina...Gostou da festa? Pela primeira vez pronunciou meu nome como se pela primeira vez me reconhecesse como um termo essencial...Perguntei-lhe como tinha conseguido...Não sei...mas foi a primeira vez que me senti sujeito da minha própria história...Sujeito simples...Verbum...intransitivo...
Essa história termina aqui...cheia de hiatos, intervalos e interditos...
Por Mônica Z.
Para embalar