Francisco era Chico do morro...era preto...não era negro....tampouco escuro...era preto...escura era a noite...e o dia era claro...Num gosto dessas coisas, não...negro, escuro...sou preto...é cor, ó...de que cor você é, 'sa menina? Branca...morena clara...Mas, que morena clara que nada, menina...você é branca e eu sou preto...sabe o que é isso...é falta do que fazer de gente que estuda demais...fica pensando bobagem, aí inventam essas coisas...tinham é que inventar cura pra doenças...aí o compadre, ó...tá morrendo aí, sozinho...
Seu Francisco era o próprio hálito da manhã dissolvido na inconformidade dos dias tão descartavelmente contemporâneos...Eu nasci Francisco de pai, né...meu pai também era Francisco...mas desde miudinho que sou Chico...Chico do querosene...do tecido...da sardinha...mas só maromba, né...não é essas porcaria de hoje, não...sardinha só graúda...era bom pra fazer pirão...tá vendo essa casa aqui...construí tudinho vendendo peixe...fui levantando um cômodo aqui...uma parede ali...é simples, mas é minha...porque ó, minha filha, casa alugada é que nem mulher bonita...um dia vai embora...
Para Chico não havia nada pequeno...tudo era miudinho...era um de seus apelidos...véio zuza, preto velho, negão, pescador...Para cada um deles seu Chico desfiava seu arsenal de palavras impublicáveis que fazia rir qualquer um que tivesse por perto...Eu sou Francisco...Chico, né...Chico preto...fica com medo não, 'sa menina...a onça é braba mas não morde...Seu Chico...onça braba....Parecia mais um urso carente...Uma de suas principais características era passar da raiva à alegria em segundos...Nunca fui a um hospital...nunca operei nadinha...mas, ó, é tudo interinho...até os dentes...
Seu Francisco morava no morro há bastante tempo...o suficiente para ter que conviver com aqueles que se achavam os donos dele...No meu tempo não tinha dessas coisas não...tinha né, mas não era assim esse descaramento...essa pouca vergonha...isso é falta do que fazer...não é falta de trabalho, não...é falta de uma boa surra...no meu tempo a gente capinava quintal...limpava fossa...e tinha que ajudar em casa se não ó, o coro comia...era pau, era fio de ferro, era chinelo, era vara de goiaba...essa então...ficava prontinha debaixo da cama de minha mãe esperando o primeiro que saísse dos trilhos...e os bobo aí, ó, tudo com essas porcaria na mão...na idade deles eu tava era passando goma no cabelo, borra de café na mão pra tirar o cheiro de peixe pra sair pra namorar...
Respirava fundo...seu olhar percorria a favela quase em câmara lenta como alguém que tendo vivido a dignidade e a grandeza de uma época, custasse a acreditar naquela triste e revoltante realidade...Ali parecia perder os sentidos...Esses merdas são uma cambada de fio-da-zunha...ah uma surra...isso é senvergonhice, minha filha...
Talvez agora seja aquela parte em que eu tenha que dizer que seu Francisco era uma pessoa muito especial...mas ele era mais que isso...era Chico...cidadão comum com pouca ou nenhuma instrução e que aos 80 anos mantinha-se vivo e lúcido, apesar de achar que já vivera o suficiente... Só tô aqui contando tempo, minha filha...
Contar o tempo era o que seu Francisco mais fazia...sua esposa, D. Maria Célia, morrera há doze anos...Os meninos tão pra lá...ninguém aparece mais por aqui, não...só o mais novo que às vezes vem no Natal...mas nem entra...fica por aí ciscando...depois vai embora...não tenho mais gosto nessa vida, não, minha filha...Aquelas pesadas verdades soavam como duras pégadas no peito de seu Francisco e pareciam doer-lhe profundamente...inquietava-se como se quisesse se livrar delas...Tem jeito não...eu não criei filho pra isso...no meu tempo era muito diferente...
Há determinados momentos na vida da gente que se você romper o silêncio ele te fere...nesses momentos a única coisa a ser fazer é não fazer nada...Quando eu morrer não quero ninguém no meu enterro...Foi a sentença final...a lágrima rolou silenciosa...árida...seca...Quero não...
Chico sentava todos os dias em frente a sua casa no banquinho que fizera de caixote de feira, e ali ficava horas emudecido...pensativo...como um diretor reeditando as últimas cenas de sua história...seu rosto castigado pelo sol...seus olhos distantes e profundos...seu sorriso profundamente escasso...suas mãos calejadas...era isso a vida...Tô cansado, menina...tô muito cansado...
Chico era digno demais para que eu tenha ainda que dizer alguma coisa...sua integridade...sua vida...as marcas do tempo desenhadas em seu rosto...sua indignação diante da falta do que fazer do ser humano...os seus valores éticos ainda que ele não tivesse a mínima idéia do que aquilo significava era o que fazia dele...o velho Chico Preto...Francisco...
Por Mônica Z.
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